terça-feira, abril 22

Meu feriado de São Jorge


Muitas coisas estranhas e arbitrárias costumam acontecer em nossa pequena república incrustada nas rochas ígneas da região dos lagos. Confesso que já tentei, inúmeras vezes, me acostumar com cada idiossincrasia da cidade, mas, quando menos se espera, algo inusitado nos assalta o espírito.
                Ao comentar com dois colegas de trabalho em um cospe-grosso famoso da cidade que as anotações que eu fazia entre uma cerveja e outra eram ideias para uma crônica, acidentalmente, inspirei divertidas especulações. Enquanto um imaginou que eu estivesse relacionando nossos dramas diários com a crise internacional pelo controle da Criméia, o outro, mais atento aos conflitos sociais locais, cogitou a possibilidade de o tema ter sido definido pelo poder simbólico que a vitória do movimento dos garis alcançara. Realmente, ninguém falava de outra coisa. A conquista acachapante da ala laranja gerou efeitos colaterais que empalideceram os patrões, causaram cólicas no enquadramento tendencioso da grande mídia, e dor de barriga nos pseudoguardiões do senso crítico. A beleza paradoxal de se tornar visível através da ausência surpreendeu a todos e traçou novos contornos no carnaval carioca.
                Contudo, para decepção dos meus companheiros, minhas preocupações no momento estão para lá das bandas do além. A quizomba atual envolve entidade de primeiríssima grandeza, o trelelê descambou para o lado de São Jorge. O santo mais popular do estado do Rio de Janeiro corre sério risco de ser rebaixado pelas autoridades locais. Meteram a mão no feriado de São Jorge, minha gente! Tenha Santa Paciência!
                Como devoto do santo guerreiro me encontro em uma terrível saia-justa. Não faço ideia de como vou explicar porque não poderei cumprir minhas obrigações para com o santo, interrompendo um fluxo devocional de mais de vinte anos. Informar que nossa excelência municipal, do alto de sua soberba, acha que tem autoridade sobre as coisas do céu e da terra, e com uma canetada resolveu transferir o dia santo para sua véspera a fim de evitar o enforcamento de outro dia de trabalho, não vai colar com São Jorge. Se fosse outro santo qualquer, tudo bem. Mas, Jorge não tem paciência para quizomba administrativa. A primeira coisa que ele fará nesta situação será checar o nome de nosso regente em sua lista de devotos. Como não encontrará qualquer registro, suas pragas cairão todas sobre nós. Não pense que Ogum lançará gafanhotos ou espetáculo pirotécnico sobre os infiéis. A barra será mais pesada. E quando ele descobrir que o dia 22 de abril já está superlotado por dois papas canonizados e mais 178 mártires franceses que aceitaram perder suas vidas para ganhar o reino dos céus – Santos Mártires de Lião (Lyon) – teremos que pedir ajuda ao dragão.
                Essa onda de transferir feriados santos para segunda ou sexta precisa ser revista imediatamente. Não é fácil convencer os santos que as condições materiais determinam nossa disponibilidade de tempo e dinheiro para agradá-los. No caso específico do santo guerreiro é ainda pior, porque devemos acender uma vela na igreja e outra no terreiro, rezar um terço e jogar capoeira, misturar vinho com cachaça artesanal. É tanta coisa que já ando estressado. Não tenho dormido direito. Ontem à noite, sonhei que caminhava pelas planícies da Capadócia quando fui surpreendido pelo próprio. Ele cobrava minha presença às quintas-feiras, dia que costumava caminhar pela praia e ajudá-lo a conquistar Iemanjá. Não me apraz intervir em relação amorosa alheia, mas admito que por algumas vezes lancei palmas e rosas brancas ao mar em nome do guerreiro. Missão esta interrompida a algumas semanas por nossas famosas reuniões de fim-de-mundo.

                Não sei a quem apelar. São Judas Tadeu já mandou avisar que minha batata tá assando e não há como me ajudar a desenrolar esse imbróglio. Se eu faltar ao trabalho amanhã, espero que meus inimigos tenham olhos e não percebam. Tenham caneta e no meu ponto não escrevam. E nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal. Porque eu estou vestido com as roupas e as armas de Jorge.