Muitas coisas estranhas e arbitrárias costumam acontecer em nossa pequena
república incrustada nas rochas ígneas da região dos lagos. Confesso que já
tentei, inúmeras vezes, me acostumar com cada idiossincrasia da cidade, mas,
quando menos se espera, algo inusitado nos assalta o espírito.
Ao comentar com dois colegas de
trabalho em um cospe-grosso famoso da cidade que as anotações que eu fazia
entre uma cerveja e outra eram ideias para uma crônica, acidentalmente,
inspirei divertidas especulações. Enquanto um imaginou que eu estivesse relacionando
nossos dramas diários com a crise internacional pelo controle da Criméia, o
outro, mais atento aos conflitos sociais locais, cogitou a possibilidade de o
tema ter sido definido pelo poder simbólico que a vitória do movimento dos
garis alcançara. Realmente, ninguém falava de outra coisa. A conquista
acachapante da ala laranja gerou efeitos colaterais que empalideceram os
patrões, causaram cólicas no enquadramento tendencioso da grande mídia, e dor
de barriga nos pseudoguardiões do senso crítico. A beleza paradoxal de se
tornar visível através da ausência surpreendeu a todos e traçou novos contornos
no carnaval carioca.
Contudo, para decepção dos meus
companheiros, minhas preocupações no momento estão para lá das bandas do além.
A quizomba atual envolve entidade de primeiríssima grandeza, o trelelê
descambou para o lado de São Jorge. O santo mais popular do estado do Rio de
Janeiro corre sério risco de ser rebaixado pelas autoridades locais. Meteram a
mão no feriado de São Jorge, minha gente! Tenha Santa Paciência!
Como devoto do santo guerreiro
me encontro em uma terrível saia-justa. Não faço ideia de como vou explicar
porque não poderei cumprir minhas obrigações para com o santo, interrompendo um
fluxo devocional de mais de vinte anos. Informar que nossa excelência
municipal, do alto de sua soberba, acha que tem autoridade sobre as coisas do
céu e da terra, e com uma canetada resolveu transferir o dia santo para sua
véspera a fim de evitar o enforcamento de outro dia de trabalho, não vai colar
com São Jorge. Se fosse outro santo qualquer, tudo bem. Mas, Jorge não tem
paciência para quizomba administrativa. A primeira coisa que ele fará nesta
situação será checar o nome de nosso regente em sua lista de devotos. Como não
encontrará qualquer registro, suas pragas cairão todas sobre nós. Não pense que
Ogum lançará gafanhotos ou espetáculo pirotécnico sobre os infiéis. A barra será
mais pesada. E quando ele descobrir que o dia 22 de abril já está superlotado
por dois papas canonizados e mais 178 mártires franceses que aceitaram perder
suas vidas para ganhar o reino dos céus – Santos Mártires de Lião (Lyon) –
teremos que pedir ajuda ao dragão.
Essa onda de transferir feriados
santos para segunda ou sexta precisa ser revista imediatamente. Não é fácil
convencer os santos que as condições materiais determinam nossa disponibilidade
de tempo e dinheiro para agradá-los. No caso específico do santo guerreiro é
ainda pior, porque devemos acender uma vela na igreja e outra no terreiro,
rezar um terço e jogar capoeira, misturar vinho com cachaça artesanal. É tanta
coisa que já ando estressado. Não tenho dormido direito. Ontem à noite, sonhei
que caminhava pelas planícies da Capadócia quando fui surpreendido pelo
próprio. Ele cobrava minha presença às quintas-feiras, dia que costumava
caminhar pela praia e ajudá-lo a conquistar Iemanjá. Não me apraz intervir em
relação amorosa alheia, mas admito que por algumas vezes lancei palmas e rosas
brancas ao mar em nome do guerreiro. Missão esta interrompida a algumas semanas
por nossas famosas reuniões de fim-de-mundo.
Não sei a quem apelar. São Judas
Tadeu já mandou avisar que minha batata tá assando e não há como me ajudar a
desenrolar esse imbróglio. Se eu faltar ao trabalho amanhã, espero que meus
inimigos tenham olhos e não percebam. Tenham caneta e no meu ponto não
escrevam. E nem mesmo pensamento eles possam ter para me fazerem mal. Porque eu
estou vestido com as roupas e as armas de Jorge.
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